terça-feira, 8 de junho de 2021

Crítica: Mortal Kombat vive pelo fan service em filme morno

Acertos na estética do universo e nas referências não escondem defeitos de uma adaptação ocasionalmente divertida, mas sem alma

Carlos Gabriel Tolêdo

Fonte: omelete.com.br

Em: 18.05.2021


Uma luta entre o bem e o mal em Mortal Kombat
Imagem: images.hdqwalls.com

Os tempos estão mudando. Com o sucesso colossal dos videogames cada vez mais difícil de ser ignorado, Hollywood percebeu o potencial de uma nova tendência e colocou uma infinidade de projetos em desenvolvimento. Nesse primeiro momento, apesar de exemplos sólidos como Sonic, falta uma obra de peso que realmente dará o pontapé inicial para a era dos games na TV e nos cinemas. Entre erros e acertos, esse posto não será do novo Mortal Kombat.

Aliás, a adaptação dos games da NetherRealm tem tudo para ser divisiva. Não necessariamente por tomar grandes riscos ou decisões ousadas, mas sim por colocar grande esforço de produção em algo que se contenta em entregar o básico, criando uma experiência que é divertida em muitos momentos, mas que joga tão seguro ao ponto da frustração.

Mortal Kombat: comparamos os personagens do novo filme com o clássico de 1995

A trama acompanha Cole Young (Lewis Tan), um lutador de MMA que se envolve em intrigas de realidades paralelas ao ser caçado por Sub-Zero (Joe Taslim), assassino enviado pelo perverso Shang Tsung (Chin Han). Acontece que, há séculos, a humanidade disputa o controle da Terra com reinos paralelos em uma competição sangrenta chamada de Mortal Kombat. Com o reino da Exoterra prestes a ganhar seu décimo torneio consecutivo, o destino do planeta fica nas mãos do deus do trovão Raiden (Tadanobu Asano), que reúne Cole e outros lutadores escolhidos para defender a humanidade na disputa.

Cole Young em luta
imagem: thesun.co.uk

Para quem nunca teve contato algum com Mortal Kombat, o filme faz um ótimo serviço em traduzir uma mitologia bastante expansiva - de realidades alternativas, tradições anciãs, deuses antigos e forças do mal - em algo de fácil compreensão. O mais surpreendente, é conseguir isso sem alienar o fã antigo, algo consistente com a forma de narrativa de títulos recentes, como Mortal Kombat X e Mortal Kombat 11, ainda que bem mais superficial. É visível que há muito carinho pelos games na produção, que consegue preservar a essência do material-base.

Como “fan service”, o longa é um acerto: alterna entre brincar e homenagear a própria mitologia, apresenta um grupo considerável de rostos dos jogos, e recria cenários e figurinos de forma precisa, mas sem deixar de tomar algumas liberdades criativas que lhe garantem autenticidade. Seja nos fatalities bastante sangrentos (um dos maiores destaques), ou então em piadas muito específicas, como Liu Kang (Ludi Lin) “apelando” na rasteira durante uma luta, é certo que há algo de valor para o público mais experiente e fiel.

O problema é a construção de Mortal Kombat como filme. O roteiro não faz ideia do que explorar no universo intrigante que tem nas mãos. Sem um bom gancho na trama, fica visível que a única motivação da obra é criar uma franquia nos cinemas. Isso motiva decisões questionáveis, como deixar o torneio titular apenas para a sequência, e usar suas quase duas horas de duração para criar uma equipe de heróis, em uma estrutura narrativa que mira na Marvel Studios, mas entrega uma jornada de descobrimento juvenil a lá Percy Jackson, em que cada um dos lutadores precisa achar seu poder interior. A abordagem não bate com o tom, e também dá um gosto de adaptação genérica ao longa. Salvo por Kano (Josh Lawson) aliviando a tensão com bom humor, Mortal Kombat não demonstra um pingo de alma em sua trama ou personagens, e mais parece fruto de uma inteligência artificial do que da criatividade de um humano.

A direção talvez seja o maior dos problemas. Não é incomum que diretores de comerciais e videoclipes migrem para o cinema, mesmo em projetos grandes. No começo dos anos 2000, por exemplo, foi o caso de Zack Snyder com Madrugada dos Mortos (2004). Já Simon McQuoid tinha certa proximidade com o universo dos games, ao ter comandado propagandas para Halo e para o PlayStation. O cineasta, porém, não fica à altura de Mortal Kombat, e falha não só em dar estilo e personalidade ao longa, mas também em tornar as lutas, o ponto central da nova adaptação, combates interessantes e criativos.

É preciso ressaltar o quão bom é o elenco do longa, especialmente no lado asiático, repleto de intérpretes experientes em artes marciais e produções de gênero. Isso não fica visível nas mãos de McQuoid, que roda as brigas sem nenhuma atenção ao ritmo, ao impacto da porradaria ou ao esforço dos participantes. Também não há consistência alguma nos combates, que ora são super picotados e mal montados, ora são tão lerdos que mais parecem um ensaio.


Scorpion no Mortal Kombat 11
Imagem: uhdpaper.com

Entre os atores, há poucos cujo talento é tanto que se destacam mesmo na câmera medíocre do cineasta. O Kung Lao de Max Huang, por exemplo, brilha em todos os momentos que aparece, ainda que a expertise do discípulo de Jackie Chan pouco dê as caras. Já o Sub-Zero de Joe Taslim é tão ameaçador e habilidoso que sua presença é a mais marcante de toda a obra. O Scorpion de Hiroyuki Sanada, eternamente em guerra com Sub-Zero, também fica à altura do rival, e a dupla protagoniza as duas únicas lutas que verdadeiramente valem a pena. Mas, para um filme em que a porradaria é ofertada como prato principal, é especialmente decepcionante sair insatisfeito com isso.

Tanto a escrita quanto a direção decepcionam aqui, mas nem sempre ter um diretor novato é sinônimo de fracasso. Afinal, em 1995, a New Line Cinema fez justamente isso, colocando o então-iniciante Paul W.S. Anderson para comandar a primeira adaptação de Mortal Kombat. O clássico é de uma galhofa gigantesca, com lutas lamentáveis e uma aura de filme B - e mesmo assim se sai melhor que a versão de 2021, justamente por demonstrar escolhas ousadas e um estilo marcante em prol do puro entretenimento.

É possível se divertir com o novo filme, seja pelo carisma do elenco, pelos ocasionais fatalities ou pelo universo intrigante, mas é uma obra que em momento algum demonstra ter a voz de um cineasta. Na promessa de uma sequência que enfim mostrará o torneio (e a chegada de Johnny Cage), há com o que se animar no futuro, mas urge a necessidade de uma nova equipe criativa que realmente queira entregar um filme bom com todas as peças que têm nas mãos, e não só levantar uma marca bilionária nas telonas para o estúdio.

Poster Mortal Kombat
Imagem: mb.web.sapo.io


Army of the Dead é um resgate dos blockbusters de zumbi

Primeiro filme de Zack Snyder pós-DC é sangrento, brega e divertido em doses iguais

Carlos Gabriel Tolêdo

Fonte: omelete.com.br

Em: 11.05.2021

Grupo se preparando para o assalto
Imagem: sm.ign.com

Ouvir o nome de Zack Snyder automaticamente traz uma associação com quadrinhos. Não é sem motivo, considerando que o cineasta passou os últimos 15 anos envolvido com obras como 300, Watchmen e Liga da Justiça. Porém, antes de se tornar referência para adaptações de HQs, Snyder lançou sua carreira com o terror Madrugada dos Mortos (2004), remake do clássico de George A. Romero. É isso que torna tão interessante vê-lo retornando para o subgênero de zumbis com Army of the Dead: Invasão em Las Vegas, seu primeiro longa original desde Sucker Punch (2011).

A produção da Netflix é importante para o cineasta, que originalmente bolou a premissa ainda no começo dos anos 2000, mas que só agora tirou a ideia da gaveta. Na trama, a cidade de Las Vegas é tomada por uma infecção zumbi após a fuga de um experimento da Área 51. Os militares agem rápido para isolar o local, cercar com muros e manter todos os mortos-vivos do lado de dentro. Com a praga controlada, o resto do mundo atinge um grau de normalidade, e o governo decide exterminar os mortos-vivos com uma bomba nuclear. O problema surge quando o ex-soldado Scott (Dave Bautista) recebe a proposta de montar uma equipe e invadir a cidade em suas últimas horas para saquear o cofre de um cassino, que foi deixado para trás com US$200 milhões.

O filme pode não servir nada realmente inédito ao subgênero, tão explorado entre as décadas de 1980 e 2010, mas traz leves modificações que criam uma experiência única. O início da infecção ter uma aparente conexão alienígena, por exemplo, ou então o fato de não ser uma jornada pelo pós-apocalipse. O surto foi contido com sucesso, e o mundo mantém certa normalidade exceto pela região contaminada. Esses elementos são pequenos por si só, mas ajudam a remixar fórmulas conhecidas, e tiram da jogada noções como “a origem do surto viral” ou “a luta cotidiana pela sobrevivência”. Questões do tipo são a base de muitas obras e já foram discutidas à exaustão em todo tipo de mídia. Com isso fora do caminho, o longa pode focar na missão principal sem maiores preocupações.

Em Army of the Dead, Snyder reconhece o impacto que sua versão de Madrugada dos Mortos teve para os zumbis no começo dos anos 2000 - especialmente para os videogames, bebendo da estética saturada, equipamentos improvisados e inimigos variados -, mas também soa como uma obra perdida daquela época, com regras muito bem estabelecidas e personagens previsíveis. As prévias dão uma ideia de uma jornada mais absurda do que realmente entrega, mas isso não diminui seu peso. O lado blockbuster do subgênero, vivo por títulos esporádicos como um Guerra Mundial Z (2013) ou um Invasão Zumbi (2016), anda tão estagnado que ver algo básico, mas muito bem conduzido, caí como uma luva para os fãs sedentos por sangue, tripas e matanças criativas.

O que faz o filme funcionar tão bem é o carisma de seu elenco. Mesmo sem um pingo de desenvolvimento decente, cada membro da equipe traz algo marcante, e a química entre eles é um destaque por si só, como a parceria entre Scott (Bautista) e Cruz (Ana de la Reguera), ou a inusitada amizade entre o badass Van (Omari Hardwick) e Dieter (Matthias Schweighöfer), especialista em arrombar cofres. Até os mais secundários brilham, como a Coiote (Nora Arnezeder), que guia o grupo pelo mundo dos mortos, ou então a sarcástica Peters, pilota de helicóptero vivida por Tig Notaro - atriz que foi adição de última hora à produção, mas rouba a cena sempre que dá as caras.

Dave Bautista em Army of the Dead
Imagem: observer.com

O elenco merece o reconhecimento especialmente por conseguir criar personagens tão divertidos em cima de um roteiro bastante questionável. A trama é convincente, mas os diálogos são terríveis: excessivamente expositivos e bregas, porém não de um jeito irônico. Há muitos bons momentos de humor que surgem ao longo da obra, mas raramente os risos vêm das piadas intencionais. Os primeiros 40 minutos do longa, que servem apenas para preparar o terreno, são um verdadeiro teste de resistência. Felizmente, quando as coisas engatam, Army of the Dead conquista, e muito se dá pela ótima direção. O que Zack Snyder deixa a desejar como roteirista, ele compensa por trás das câmeras.

Em eventos de divulgação, o diretor enfatizou que o longa não se trata só de horror, mas sim uma mistura de gêneros. O filme segue essa ideia à risca, e mostra influência tanto de Romero, quanto Fuga de Nova York (1981), de John Carpenter. Transitar entre ação e terror não é tarefa fácil, mas o cineasta se mostra flexível. Um momento em que o grupo precisa passar uma cozinha infestada de mortos começa repleta de tensão, e é conduzida de forma sufocante e claustrofóbica quando os soldados tentam encontrar o caminho em meio à escuridão. Eventualmente, as coisas dão errado, e a cena vai do silêncio ao caos, com tiroteio, fuga e traição e boas coreografias de porradaria. É um pouco surpreendente que Snyder consiga alternar o tom de forma tão fluida, especialmente acumulando funções nos bastidores. Isso, porém, tem um preço.

Após anos de produções visualmente marcantes, é normal esperar um espetáculo do cineasta, mas esse é o seu trabalho mais esteticamente moderado até agora. Muitas de suas marcas registradas dão as caras, como as composições melancólicas, o apreço pela mitologia e religião e, claro, o uso sem ressalvas de slow motion. Ainda assim, a frequência e a escala dessas decisões estilísticas são muito mais comedidas do que o esperado, sem muita grandiosidade.

Muito disso vem do fato de que essa é sua primeira vez como diretor de fotografia, função que antes era de colaboradores como Larry Fong (300, Watchmen, Batman vs Superman). Sem o colega (que recebe um easter egg em forma de cartaz de show de mágica), Snyder dá uns passos para trás e tenta aprender a realizar seu ambicioso estilo autoral com as próprias mãos. O resultado é algo diluído, mas altamente digerível para quem não vai com a cara de seu trabalho. Já quem é fã pode ficar desapontado de vê-lo mais limitado. Em ambos os casos, porém, a assinatura do diretor é bastante visível.

Army of the Dead pode ter muitas ideias repetitivas e não impressionar na trama ou nos personagens, mas é autêntico em reconstruir a pegada dos filmes de zumbis dos anos 2000, focando na sanguinolência (muito bem feita, por sinal) e na ação. É especialmente interessante que esse tenha sido o primeiro projeto de Zack Snyder após anos dedicado à DC Comics. Para quem construiu uma fama de fazer obras sombrias e realistas, aqui é muito visível que o objetivo foi se divertir. Isso também se estende ao elenco, que eventualmente contorna o roteiro lamentável e abraça a breguice, visando o puro entretenimento. O resultado é altamente satisfatório: um filme que segura o espectador pela ação, pela tensão e também, claro, pela tosqueira. Tudo sem medo de ser feliz.

terça-feira, 6 de abril de 2021

Tenet - 700 O Bond Reverso de Nolan

Aventura cabeçuda e não oficial de James Bond é o puro suco do diretor de A Origem

Carlos Gabriel Tolêdo

Fonte: omelete.com.br

Em: 28.10.2020

Poster de Divulgação
Imagem: zonanegativa.com.br

Quando precisa explicar em O Enigma do Horizonte o que é um buraco de minhoca, Sam Neill dobra ao meio um pôster de mulher pelada, que ele então fura com um lápis, gesto que transcende o didatismo da cena e antecipa a carga erótica que se verá até o fim do filme. Em Interestelar, embora interprete um piloto astronauta, Matthew McConaughey também precisa que lhe expliquem o buraco de minhoca, o que é feito com uma folha de papel em branco.

A comparação diz muito sobre como funciona a mente analítica de Christopher Nolan, e seria demais exigir que seus filmes, mesmo os mais fantasiosos, de repente enchessem folhas e mais folhas com senso de humor e imaginação. De certo modo, Nolan pensa com a meticulosidade dos assassinos, e talvez seja por isso que Tenet - na prática uma aventura cabeçuda e não oficial de James Bond - se revela um grande suco concentrado de Nolan.

Tirando a questão do erotismo (que Nolan até tenta esboçar, na tensão interracial entre a virilidade de John David Washington e a esquivez de Elizabeth Debicki), inerente ao mito do espião doce e impiedoso, o que Tenet oferece é uma exacerbação das regras que tornaram 007, ao longo das décadas, esse indiscutível totem da masculinidade. Para além das suas obviedades, que trazem na exposição os eternos diálogos explicativos de radionovela de Nolan, Tenet cresce se for visto como um filme-ensaio radical sobre esse mito.

Duas características aparentemente contraditórias, paradoxo que é fundamental para entendermos o mito bondiano, estão no centro da construção de Tenet: o fato do espião ser descartável, impessoal, um número numa série (ou uma folha em branco), e ao mesmo tempo esse espião ser uma personificação inimitável do espírito imperial britânico, mais até do que a própria rainha que ele serve caninamente. Em Tenet, a jornada de John David Washington é análoga: seu personagem sem nome passa o filme reivindicando (em voz alta, claro) um protagonismo que lhe tire a condição de peão e lhe dê o controle da própria história. Não por acaso, é um americano que atua na Europa e na Ásia - um expatriado em busca de pertencimento.

Como é regra nos blockbusters de Nolan, quando Tenet transforma os dilemas desse 007 existencialista em texto, isso evidentemente não torna o filme mais inteligente, só mais pretensioso. O caso é que há inteligência e uma boa dose de intuição, sim, quando o filme coloca Washington em situações que são versões potencializadas de conflitos bondianos velados, como o preconceito de classe (a troca com o maître aristocrático na cena com Michael Caine) e a submissão rápida a figuras maternais (o que seria a presença régia da indiana Priya neste filme senão uma substituta da Rainha da Inglaterra?).

E então torna-se bastante esclarecedor - quiçá empolgante - perceber os cruzamentos entre o mito dissecado e as próprias obsessões temáticas que acompanham Nolan desde os seus primeiros trabalhos. Os filmes de 007 são famosos pela objetificação das Bond girls? Ora, o cinema de Nolan desde sempre se fez em torno do fetiche da esposa morta - e nesse encontro ganhamos uma Bond girl que é literalmente um cadáver que anda, ideia cuja morbidez, Debicki não deixa que nos escape sempre que ela mostra para a câmera a cicatriz fatal na barriga. Espera-se dos assassinos frios que sejam cortantes no jogo de palavras, mais inteligentes que o resto da sala? Pois a troca de diálogos em Tenet é tétrica, personagens que ficam corrigindo uns aos outros obsessivamente, em duelos de hombridade disfarçados de rebuscamento, e nisso Nolan também se supera. O que é a disputa de condicionamento físico entre o herói (e seus exercícios de barra) e o vilão (e seu reloginho de performance) senão uma reedição da brincadeira de Inception para ver quem tem o fuzil maior, o escancaramento de uma risível competição masculina que também está na essência do mito bondiano.

É como se o diretor londrino, neste 2020 em que completa 50 anos, com seu porta-estandarte do salvamento do cinema, presenteasse a si mesmo com a autorização secreta de se apropriar mesmo do maior símbolo inglês. O que Nolan faz com essa permissão é canalizar sua visão de mundo na “missão”. Essa é a grande divindade a ser venerada: as unidades de tempo (seja do presente para o futuro ou do futuro para o presente, não importa) só existem para ser a métrica da missão. Como o dedicado espião a serviço da coroa, Nolan encanta porque faz parecer que seu pensamento é expansivo e versátil, quando na verdade se revela sempre estreito e retilíneo. Não é sempre que criador e criatura se fundem de tal maneira, e testemunhar a eventualidade desse fenômeno pode, sim, ser muito especial.

O Protagonista e Neil
Imagem: vertentesdocinema.com

Esse encontro é levado ao paroxismo, coincidentemente, durante o clímax, encenado num mapa desértico tipo Counter-Strike, cheio das edificações de concreto que Nolan sempre busca, a título de minimalismo. Se a premissa de Tenet já pegava emprestados conceitos temporais de jogos como Braid e Prince of Persia: The Sands of Time - e a própria noção de Respawn de personagens no filme já traz consigo uma narrativa gamificada - é na batalha campal que a mecanização da guerra fica incontornável, uma guerra feita de incontáveis agentes secretos descartáveis e impessoais, como NPCs sem nome ou história, todos de máscaras pretas e identificáveis apenas pelas tags coloridas de equipe.

Ora, ao associar o dilema bondiano (“quero ser único embora eu seja só um número no proletariado do MI-6”) com a natureza dos jogos de tiro e também com sua própria obsessão militarista (o que move os filmes do diretor senão um choque entre o sonho do livre arbítrio emancipador e o prazer belicoso pelas regras impostas), Nolan vê seu Tenet virar uma supernova de significação, que como tal já escapa por completo do controle do seu autor. A ação do clímax transcorre anestesiada - paredes, corpos e munição ziguezagueando na tela num festival de imagens sem propósito, soltas no tempo - porque no núcleo dessa supernova não se encontra mais um meio termo possível: é inviável ser um peão sem rosto na guerra e ao mesmo tempo reivindicar para si uma individualidade digna desse nome.

E então chegamos ao ponto de entropia: não aquela explicada no início de Tenet (numa cena didática e sem imaginação num estande de tiro, como não deixaria de ser), e sim a entropia do próprio cinema de Nolan, que na busca por se expandir passa a engolir a si mesmo. Seu herói diz com orgulho positivista que enfim atinou para seu status de protagonista, de dono do seu próprio destino, mas a lógica do herói que transita irrefletidamente de missão em missão, de respawn em respawn, sem consequências morais (só uma ou outra cicatriz, como medalhas), não deixa de anular esse suposto protagonismo.

Há uma questão aí que vinha se gestando há anos. Se os problemas de Dunkirk são essencialmente de natureza moral, na forma como Nolan reduz a guerra à frieza das horas, Tenet não deixa de ser um desdobramento disso, aplicado ao entretenimento de escapismo com toques de metalinguagem e autoajuda. Conciliar o elogio da individualidade com o teatro da guerra é um quebra-cabeça impossível que a já folclórica genialidade de Christopher Nolan não solucionou ainda.

Liga da Justiça de Zack Snyder convida a experimentar o tédio dos deuses


Versão do diretor consagra a mitologia dos super-heróis baseada no paternalismo

Carlos Gabriel Tolêdo

Fonte: omelete.com.br

Em: 15.03.21

Poster de Divulgação
Imagem: poltronanerd.com.br

Das mudanças que o público poderá assistir na versão de Zack Snyder de Liga da Justiça, uma das principais é o arco de Ciborgue (Ray Fisher). No filme lançado em 2017, a subtrama envolvendo Victor Stone, seu pai Sylas e os cientistas dos Laboratórios S.T.A.R. foi reduzida, e o desfecho do drama entre Ciborgue e Sylas era outro, oposto ao que o Snyder Cut agora repara e apresenta. 

Snyder diz que a jornada de Ciborgue é a metáfora central que une os arcos desses personagens. A saber: Ciborgue morre, renasce desumanizado como máquina, e reencontra um propósito de ser no automatismo dessa ciberevolução. Uma das cenas mais emblemáticas do Snyder Cut é quando Ciborgue manipula bancos digitalmente para dar uma fortuna a uma mulher necessitada, cuja rotina ele observava por telas à distância. Ela não sabe que foi ajudada e Ciborgue sai escondido; as únicas pessoas na rua que o veem tratam o salvador como um Frankenstein.

Quando diz que os super-heróis modernos são a mitologia do século 20, como frisou na entrevista que deu nesta semana ao Omelete, Snyder demonstra - e ilustra muito bem nessa cena de apresentação do Ciborgue - que ele se espelha na mitologia greco-romana, em que os deuses governam os destinos dos mortais numa relação assimétrica de poder, que gera tédio e distanciamento nos deuses e medo e imobilismo nos mortais. Na prática, embora imbuído das melhores intenções, o mundo que Snyder vê para os super-heróis da DC é determinado pelo paternalismo.

É por isso que as relações parentais têm um papel tão reiterado em Liga da Justiça, a ponto de eclipsar os demais temas que essas quatro horas de filme poderiam vir a oferecer. Ao invés de humanizar os personagens, a orfandade de Clark (Henry Cavill), Bruce (Ben Affleck), Diana (Gal Gadot), Arthur (Jason Momoa) e Victor produz nos super-heróis um efeito inverso: eles substituem os pais ausentes, e nesse vácuo, passam a emular o comportamento dos deuses paternalistas. Não há dúvida de que é terrível a tragédia do Ciborgue, mas o que se vê no filme é essencialmente um personagem entediado com sua condição.

Ora, a partir do momento em que o tédio se torna intrínseco a esses personagens (com a exceção do Flash, cujo luto parental se encontra na fase da barganha, inscrito no seu superpoder de tentar estar em todos os lugares ao mesmo tempo), o próprio filme tem muita dificuldade de se livrar desse estado emocional. Em relação à trama de invasão alienígena, o tédio está principalmente na forma como a exposição (antes sintetizada em duas horas de filme) se alonga em cenas que não servem para impor ritmo; quantas vezes precisamos ver o pessoal dos Laboratórios S.T.A.R. trabalhando na nave de Krypton pra entender que ali é um foco da ação?

Nem o discurso do diretor escapa ao enfado. Uma vez que estabelece o status de deuses mitológicos e a filiação como temas de seu filme, Snyder passa a repetir esse enunciado de novo e de novo, como se a repetição em si criasse e resolvesse sozinha conflitos dramáticos. Falta a fagulha de tornar esse enunciado um problema dentro do roteiro, problema esse que caberia à ação resolver depois, como Snyder havia conseguido fazer ao evocar “Martha” em Batman vs Superman (que aproveita o tema da filiação e o torna um potencial de conflito, de drama). Em Liga da Justiça, essa luz só acende no epílogo, quando cabe ao Coringa (Jared Leto), claro, sempre lúcido, chamar a atenção do Batman para seu complexo parental.

Darkseid
Imagem: static.wikia.nocookie.net

Ao longo do filme, mostra-se um lugar absolutamente solitário, esse do Olimpo. Pode parecer que Liga da Justiça está traçando um grandioso estudo sobre o luto (é o que o filme nos diz sempre, repetindo ideias e imagens de sombra e morte), mas na verdade o afeto hegemônico é o da alienação. Quando Flash (Ezra Miller) tenta devolver a humanidade dos heróis em seus momentos de alívio cômico, isso se dá essencialmente pelo constrangimento. O enquadramento 4:3 isola mais ainda esses personagens, que as soluções de câmera de Snyder tendem a congelar em poses de estátuas super-heroicas. Quando tudo é cimentado e o roteiro não consegue esboçar disso um conflito, o que resta a fazer? A solução final, a destruição do Olimpo, fantasia secreta de Snyder que assombra os personagens em pesadelo até o epílogo.

É um olhar acima de tudo pessimista, e no fim das contas parece mais que sensato que a Warner Bros. tenha tentado desmontar essa visão de mundo em 2017. De qualquer forma, não dá pra dizer que o estúdio foi pego de surpresa, depois de validar o martírio cerimonial de 300 e o holocausto nuclear de Watchmen. Os super-heróis de Liga da Justiça estão mais próximos de Ozymandias do que se imagina; o personagem que Alan Moore extraiu do poema escrito por Percy Shelley em 1818 lamenta que sua criação magnífica será esquecida pelas areias do tempo. Ozymandias viveu para a sua obra, tirou disso uma satisfação narcísica, e se recolhe ao luto perene por saber que os mortais, eles se esquecerão.



Crítica: Mortal Kombat vive pelo fan service em filme morno

Acertos na estética do universo e nas referências não escondem defeitos de uma adaptação ocasionalmente divertida, mas sem alma Carlos Gab...