Versão do diretor consagra a mitologia dos super-heróis
baseada no paternalismo
Carlos Gabriel Tolêdo
Fonte: omelete.com.br
Em: 15.03.21
Das mudanças que o público poderá assistir na versão de Zack Snyder de Liga da Justiça, uma das principais é o arco de Ciborgue (Ray Fisher). No filme lançado em 2017, a subtrama envolvendo Victor Stone, seu pai Sylas e os cientistas dos Laboratórios S.T.A.R. foi reduzida, e o desfecho do drama entre Ciborgue e Sylas era outro, oposto ao que o Snyder Cut agora repara e apresenta.
Snyder diz que a jornada de Ciborgue é a metáfora central
que une os arcos desses personagens. A saber: Ciborgue morre, renasce
desumanizado como máquina, e reencontra um propósito de ser no automatismo
dessa ciberevolução. Uma das cenas mais emblemáticas do Snyder Cut é quando
Ciborgue manipula bancos digitalmente para dar uma fortuna a uma mulher
necessitada, cuja rotina ele observava por telas à distância. Ela não sabe que
foi ajudada e Ciborgue sai escondido; as únicas pessoas na rua que o veem
tratam o salvador como um Frankenstein.
Quando diz que os super-heróis modernos são a mitologia do século 20, como frisou na entrevista que deu nesta semana ao Omelete, Snyder demonstra - e ilustra muito bem nessa cena de apresentação do Ciborgue - que ele se espelha na mitologia greco-romana, em que os deuses governam os destinos dos mortais numa relação assimétrica de poder, que gera tédio e distanciamento nos deuses e medo e imobilismo nos mortais. Na prática, embora imbuído das melhores intenções, o mundo que Snyder vê para os super-heróis da DC é determinado pelo paternalismo.
É por isso que as relações parentais têm um papel tão
reiterado em Liga da Justiça, a ponto de eclipsar os demais temas que essas
quatro horas de filme poderiam vir a oferecer. Ao invés de humanizar os
personagens, a orfandade de Clark (Henry Cavill), Bruce (Ben Affleck),
Diana (Gal Gadot), Arthur (Jason Momoa) e Victor produz nos
super-heróis um efeito inverso: eles substituem os pais ausentes, e nesse
vácuo, passam a emular o comportamento dos deuses paternalistas. Não há dúvida
de que é terrível a tragédia do Ciborgue, mas o que se vê no filme é
essencialmente um personagem entediado com sua condição.
Ora, a partir do momento em que o tédio se torna intrínseco
a esses personagens (com a exceção do Flash, cujo luto parental se
encontra na fase da barganha, inscrito no seu superpoder de tentar estar em
todos os lugares ao mesmo tempo), o próprio filme tem muita dificuldade de se
livrar desse estado emocional. Em relação à trama de invasão alienígena, o
tédio está principalmente na forma como a exposição (antes sintetizada em duas
horas de filme) se alonga em cenas que não servem para impor ritmo; quantas
vezes precisamos ver o pessoal dos Laboratórios S.T.A.R. trabalhando na nave de
Krypton pra entender que ali é um foco da ação?
Nem o discurso do diretor escapa ao enfado. Uma vez que
estabelece o status de deuses mitológicos e a filiação como temas de seu filme,
Snyder passa a repetir esse enunciado de novo e de novo, como se a repetição em
si criasse e resolvesse sozinha conflitos dramáticos. Falta a fagulha de tornar
esse enunciado um problema dentro do roteiro, problema esse que caberia à ação
resolver depois, como Snyder havia conseguido fazer ao evocar “Martha” em Batman
vs Superman (que aproveita o tema da filiação e o torna um potencial de
conflito, de drama). Em Liga da Justiça, essa luz só acende no epílogo, quando
cabe ao Coringa (Jared Leto), claro, sempre lúcido, chamar a
atenção do Batman para seu complexo parental.Darkseid
Imagem: static.wikia.nocookie.net
Ao longo do filme, mostra-se um lugar absolutamente
solitário, esse do Olimpo. Pode parecer que Liga da Justiça está traçando um
grandioso estudo sobre o luto (é o que o filme nos diz sempre, repetindo ideias
e imagens de sombra e morte), mas na verdade o afeto hegemônico é o da
alienação. Quando Flash (Ezra Miller) tenta devolver a humanidade dos
heróis em seus momentos de alívio cômico, isso se dá essencialmente pelo
constrangimento. O enquadramento 4:3 isola mais ainda esses personagens,
que as soluções de câmera de Snyder tendem a congelar em poses de estátuas
super-heroicas. Quando tudo é cimentado e o roteiro não consegue esboçar disso
um conflito, o que resta a fazer? A solução final, a destruição do Olimpo,
fantasia secreta de Snyder que assombra os personagens em pesadelo até o
epílogo.
É um olhar acima de tudo pessimista, e no fim das contas
parece mais que sensato que a Warner Bros. tenha tentado desmontar essa visão
de mundo em 2017. De qualquer forma, não dá pra dizer que o estúdio foi pego de
surpresa, depois de validar o martírio cerimonial de 300 e o holocausto nuclear
de Watchmen. Os super-heróis de Liga da Justiça estão mais próximos de
Ozymandias do que se imagina; o personagem que Alan Moore extraiu do poema
escrito por Percy Shelley em 1818 lamenta que sua criação magnífica será
esquecida pelas areias do tempo. Ozymandias viveu para a sua obra, tirou disso
uma satisfação narcísica, e se recolhe ao luto perene por saber que os mortais,
eles se esquecerão.
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