terça-feira, 6 de abril de 2021

Tenet - 700 O Bond Reverso de Nolan

Aventura cabeçuda e não oficial de James Bond é o puro suco do diretor de A Origem

Carlos Gabriel Tolêdo

Fonte: omelete.com.br

Em: 28.10.2020

Poster de Divulgação
Imagem: zonanegativa.com.br

Quando precisa explicar em O Enigma do Horizonte o que é um buraco de minhoca, Sam Neill dobra ao meio um pôster de mulher pelada, que ele então fura com um lápis, gesto que transcende o didatismo da cena e antecipa a carga erótica que se verá até o fim do filme. Em Interestelar, embora interprete um piloto astronauta, Matthew McConaughey também precisa que lhe expliquem o buraco de minhoca, o que é feito com uma folha de papel em branco.

A comparação diz muito sobre como funciona a mente analítica de Christopher Nolan, e seria demais exigir que seus filmes, mesmo os mais fantasiosos, de repente enchessem folhas e mais folhas com senso de humor e imaginação. De certo modo, Nolan pensa com a meticulosidade dos assassinos, e talvez seja por isso que Tenet - na prática uma aventura cabeçuda e não oficial de James Bond - se revela um grande suco concentrado de Nolan.

Tirando a questão do erotismo (que Nolan até tenta esboçar, na tensão interracial entre a virilidade de John David Washington e a esquivez de Elizabeth Debicki), inerente ao mito do espião doce e impiedoso, o que Tenet oferece é uma exacerbação das regras que tornaram 007, ao longo das décadas, esse indiscutível totem da masculinidade. Para além das suas obviedades, que trazem na exposição os eternos diálogos explicativos de radionovela de Nolan, Tenet cresce se for visto como um filme-ensaio radical sobre esse mito.

Duas características aparentemente contraditórias, paradoxo que é fundamental para entendermos o mito bondiano, estão no centro da construção de Tenet: o fato do espião ser descartável, impessoal, um número numa série (ou uma folha em branco), e ao mesmo tempo esse espião ser uma personificação inimitável do espírito imperial britânico, mais até do que a própria rainha que ele serve caninamente. Em Tenet, a jornada de John David Washington é análoga: seu personagem sem nome passa o filme reivindicando (em voz alta, claro) um protagonismo que lhe tire a condição de peão e lhe dê o controle da própria história. Não por acaso, é um americano que atua na Europa e na Ásia - um expatriado em busca de pertencimento.

Como é regra nos blockbusters de Nolan, quando Tenet transforma os dilemas desse 007 existencialista em texto, isso evidentemente não torna o filme mais inteligente, só mais pretensioso. O caso é que há inteligência e uma boa dose de intuição, sim, quando o filme coloca Washington em situações que são versões potencializadas de conflitos bondianos velados, como o preconceito de classe (a troca com o maître aristocrático na cena com Michael Caine) e a submissão rápida a figuras maternais (o que seria a presença régia da indiana Priya neste filme senão uma substituta da Rainha da Inglaterra?).

E então torna-se bastante esclarecedor - quiçá empolgante - perceber os cruzamentos entre o mito dissecado e as próprias obsessões temáticas que acompanham Nolan desde os seus primeiros trabalhos. Os filmes de 007 são famosos pela objetificação das Bond girls? Ora, o cinema de Nolan desde sempre se fez em torno do fetiche da esposa morta - e nesse encontro ganhamos uma Bond girl que é literalmente um cadáver que anda, ideia cuja morbidez, Debicki não deixa que nos escape sempre que ela mostra para a câmera a cicatriz fatal na barriga. Espera-se dos assassinos frios que sejam cortantes no jogo de palavras, mais inteligentes que o resto da sala? Pois a troca de diálogos em Tenet é tétrica, personagens que ficam corrigindo uns aos outros obsessivamente, em duelos de hombridade disfarçados de rebuscamento, e nisso Nolan também se supera. O que é a disputa de condicionamento físico entre o herói (e seus exercícios de barra) e o vilão (e seu reloginho de performance) senão uma reedição da brincadeira de Inception para ver quem tem o fuzil maior, o escancaramento de uma risível competição masculina que também está na essência do mito bondiano.

É como se o diretor londrino, neste 2020 em que completa 50 anos, com seu porta-estandarte do salvamento do cinema, presenteasse a si mesmo com a autorização secreta de se apropriar mesmo do maior símbolo inglês. O que Nolan faz com essa permissão é canalizar sua visão de mundo na “missão”. Essa é a grande divindade a ser venerada: as unidades de tempo (seja do presente para o futuro ou do futuro para o presente, não importa) só existem para ser a métrica da missão. Como o dedicado espião a serviço da coroa, Nolan encanta porque faz parecer que seu pensamento é expansivo e versátil, quando na verdade se revela sempre estreito e retilíneo. Não é sempre que criador e criatura se fundem de tal maneira, e testemunhar a eventualidade desse fenômeno pode, sim, ser muito especial.

O Protagonista e Neil
Imagem: vertentesdocinema.com

Esse encontro é levado ao paroxismo, coincidentemente, durante o clímax, encenado num mapa desértico tipo Counter-Strike, cheio das edificações de concreto que Nolan sempre busca, a título de minimalismo. Se a premissa de Tenet já pegava emprestados conceitos temporais de jogos como Braid e Prince of Persia: The Sands of Time - e a própria noção de Respawn de personagens no filme já traz consigo uma narrativa gamificada - é na batalha campal que a mecanização da guerra fica incontornável, uma guerra feita de incontáveis agentes secretos descartáveis e impessoais, como NPCs sem nome ou história, todos de máscaras pretas e identificáveis apenas pelas tags coloridas de equipe.

Ora, ao associar o dilema bondiano (“quero ser único embora eu seja só um número no proletariado do MI-6”) com a natureza dos jogos de tiro e também com sua própria obsessão militarista (o que move os filmes do diretor senão um choque entre o sonho do livre arbítrio emancipador e o prazer belicoso pelas regras impostas), Nolan vê seu Tenet virar uma supernova de significação, que como tal já escapa por completo do controle do seu autor. A ação do clímax transcorre anestesiada - paredes, corpos e munição ziguezagueando na tela num festival de imagens sem propósito, soltas no tempo - porque no núcleo dessa supernova não se encontra mais um meio termo possível: é inviável ser um peão sem rosto na guerra e ao mesmo tempo reivindicar para si uma individualidade digna desse nome.

E então chegamos ao ponto de entropia: não aquela explicada no início de Tenet (numa cena didática e sem imaginação num estande de tiro, como não deixaria de ser), e sim a entropia do próprio cinema de Nolan, que na busca por se expandir passa a engolir a si mesmo. Seu herói diz com orgulho positivista que enfim atinou para seu status de protagonista, de dono do seu próprio destino, mas a lógica do herói que transita irrefletidamente de missão em missão, de respawn em respawn, sem consequências morais (só uma ou outra cicatriz, como medalhas), não deixa de anular esse suposto protagonismo.

Há uma questão aí que vinha se gestando há anos. Se os problemas de Dunkirk são essencialmente de natureza moral, na forma como Nolan reduz a guerra à frieza das horas, Tenet não deixa de ser um desdobramento disso, aplicado ao entretenimento de escapismo com toques de metalinguagem e autoajuda. Conciliar o elogio da individualidade com o teatro da guerra é um quebra-cabeça impossível que a já folclórica genialidade de Christopher Nolan não solucionou ainda.

Liga da Justiça de Zack Snyder convida a experimentar o tédio dos deuses


Versão do diretor consagra a mitologia dos super-heróis baseada no paternalismo

Carlos Gabriel Tolêdo

Fonte: omelete.com.br

Em: 15.03.21

Poster de Divulgação
Imagem: poltronanerd.com.br

Das mudanças que o público poderá assistir na versão de Zack Snyder de Liga da Justiça, uma das principais é o arco de Ciborgue (Ray Fisher). No filme lançado em 2017, a subtrama envolvendo Victor Stone, seu pai Sylas e os cientistas dos Laboratórios S.T.A.R. foi reduzida, e o desfecho do drama entre Ciborgue e Sylas era outro, oposto ao que o Snyder Cut agora repara e apresenta. 

Snyder diz que a jornada de Ciborgue é a metáfora central que une os arcos desses personagens. A saber: Ciborgue morre, renasce desumanizado como máquina, e reencontra um propósito de ser no automatismo dessa ciberevolução. Uma das cenas mais emblemáticas do Snyder Cut é quando Ciborgue manipula bancos digitalmente para dar uma fortuna a uma mulher necessitada, cuja rotina ele observava por telas à distância. Ela não sabe que foi ajudada e Ciborgue sai escondido; as únicas pessoas na rua que o veem tratam o salvador como um Frankenstein.

Quando diz que os super-heróis modernos são a mitologia do século 20, como frisou na entrevista que deu nesta semana ao Omelete, Snyder demonstra - e ilustra muito bem nessa cena de apresentação do Ciborgue - que ele se espelha na mitologia greco-romana, em que os deuses governam os destinos dos mortais numa relação assimétrica de poder, que gera tédio e distanciamento nos deuses e medo e imobilismo nos mortais. Na prática, embora imbuído das melhores intenções, o mundo que Snyder vê para os super-heróis da DC é determinado pelo paternalismo.

É por isso que as relações parentais têm um papel tão reiterado em Liga da Justiça, a ponto de eclipsar os demais temas que essas quatro horas de filme poderiam vir a oferecer. Ao invés de humanizar os personagens, a orfandade de Clark (Henry Cavill), Bruce (Ben Affleck), Diana (Gal Gadot), Arthur (Jason Momoa) e Victor produz nos super-heróis um efeito inverso: eles substituem os pais ausentes, e nesse vácuo, passam a emular o comportamento dos deuses paternalistas. Não há dúvida de que é terrível a tragédia do Ciborgue, mas o que se vê no filme é essencialmente um personagem entediado com sua condição.

Ora, a partir do momento em que o tédio se torna intrínseco a esses personagens (com a exceção do Flash, cujo luto parental se encontra na fase da barganha, inscrito no seu superpoder de tentar estar em todos os lugares ao mesmo tempo), o próprio filme tem muita dificuldade de se livrar desse estado emocional. Em relação à trama de invasão alienígena, o tédio está principalmente na forma como a exposição (antes sintetizada em duas horas de filme) se alonga em cenas que não servem para impor ritmo; quantas vezes precisamos ver o pessoal dos Laboratórios S.T.A.R. trabalhando na nave de Krypton pra entender que ali é um foco da ação?

Nem o discurso do diretor escapa ao enfado. Uma vez que estabelece o status de deuses mitológicos e a filiação como temas de seu filme, Snyder passa a repetir esse enunciado de novo e de novo, como se a repetição em si criasse e resolvesse sozinha conflitos dramáticos. Falta a fagulha de tornar esse enunciado um problema dentro do roteiro, problema esse que caberia à ação resolver depois, como Snyder havia conseguido fazer ao evocar “Martha” em Batman vs Superman (que aproveita o tema da filiação e o torna um potencial de conflito, de drama). Em Liga da Justiça, essa luz só acende no epílogo, quando cabe ao Coringa (Jared Leto), claro, sempre lúcido, chamar a atenção do Batman para seu complexo parental.

Darkseid
Imagem: static.wikia.nocookie.net

Ao longo do filme, mostra-se um lugar absolutamente solitário, esse do Olimpo. Pode parecer que Liga da Justiça está traçando um grandioso estudo sobre o luto (é o que o filme nos diz sempre, repetindo ideias e imagens de sombra e morte), mas na verdade o afeto hegemônico é o da alienação. Quando Flash (Ezra Miller) tenta devolver a humanidade dos heróis em seus momentos de alívio cômico, isso se dá essencialmente pelo constrangimento. O enquadramento 4:3 isola mais ainda esses personagens, que as soluções de câmera de Snyder tendem a congelar em poses de estátuas super-heroicas. Quando tudo é cimentado e o roteiro não consegue esboçar disso um conflito, o que resta a fazer? A solução final, a destruição do Olimpo, fantasia secreta de Snyder que assombra os personagens em pesadelo até o epílogo.

É um olhar acima de tudo pessimista, e no fim das contas parece mais que sensato que a Warner Bros. tenha tentado desmontar essa visão de mundo em 2017. De qualquer forma, não dá pra dizer que o estúdio foi pego de surpresa, depois de validar o martírio cerimonial de 300 e o holocausto nuclear de Watchmen. Os super-heróis de Liga da Justiça estão mais próximos de Ozymandias do que se imagina; o personagem que Alan Moore extraiu do poema escrito por Percy Shelley em 1818 lamenta que sua criação magnífica será esquecida pelas areias do tempo. Ozymandias viveu para a sua obra, tirou disso uma satisfação narcísica, e se recolhe ao luto perene por saber que os mortais, eles se esquecerão.



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